SUMÁRIO: Os efeitos da globalização na integração das
culturas humanas. O homem moderno tornou-se cidadão de um mundo global. A presença da
nobreza estrangeira no Brasil. A possibilidade de cidadãos, aqui radicados, possuírem
títulos de nobreza hereditários. O patrimônio moral. Tendências atuais. Cláusulas
sucessórias que podem ensejar discussão. Sua sucessão poderá ser discutida no Brasil?.
Possibilidade de integração das tradições nobiliárias à militância forense pátria.
O
acelerado processo de incorporação e assimilação de culturas entre os povos, trouxe
crescentes transformações às sociedades humanas. Das conseqüências da saga
globalizante, que parece evoluir inexoravelmente por todo o planeta, destacamos a
transmigração de costumes nobiliários, que emolduravam apenas os cenários
sócio-culturais de nações com tradição monárquica, mas restaram integrados à nova e
grandiosa comunidade mundial.
Não
existe Geografia sem História: o espaço geográfico é um produto social gerado pela
atividade produtiva e pelas idéias que, ao longo do tempo, se materializaram sobre a
superfície do planeta. A globalização atua sobre o espaço herdado de tempos passados,
remodelando-o em função das novas necessidades[1].
Conceitos
tradicionais de cidadania, educação, regras de comércio, direitos humanos e liberdades
públicas adquiriram novas formas, sob a influência de modernos paradigmas. Afastando a
inconveniência do isolamento, Estados de antigo modelo, ciosos de sua soberania e da
singularidade do regramento interno, atualizaram-se, integrando novos instrumentos
jurídicos e comerciais aos seus sistemas normativos. Assim aparelhadas, as sociedades
reavaliaram a emergente realidade social, substancialmente modificada, para adaptar-se a
essa convivência forçosamente ampliada e diversificada.
Em
decorrência, tornou-se inevitável o sincretismo dos costumes, tradições, e modus
vivendi entre nacionais e estrangeiros, todos agora cidadãos de um mundo global, que
deverá zelar por seus interesses e respeitar suas tradições.
Nesse
passo, ao lado da preservação de direitos humanos fundamentais, liberdades públicas, da
cooperação para persecução e prevenção penal e das práticas comerciais,
manifesta-se também a possibilidade de cidadãos estrangeiros, aqui radicados, ostentarem
títulos nobiliárquicos hereditários, e eventuais querelas sobre sua sucessão, se aqui
ocorrida, serem submetidas a deslinde perante as autoridades judiciárias locais.
É
sabido que a nobreza estrangeira, com investimentos de capital financeiro e tecnologia,
esteve presente desde os primórdios da industrialização, e imprimiu sua marca na
história pátria. Não há como desconhecer a alavancagem econômica e cultural que
aportou com os Scarpa, Gomes da Costa, Matarazzo, Rossi di Montelera, Johan-Faber e muitos
outros, que moldaram a realidade social da época.
O
conteúdo patrimonial de seus bens foi incorporado ao panorama econômico nacional. Mas o
status nobiliário e, especialmente, sua sequência, nunca foram objeto de maiores
indagações, pela ausência dessa modalidade de sucessão hereditária no Brasil.
Referimo-nos aos títulos nobiliários estrangeiros, pois as mercês conferidas pelos
monarcas brasileiros o foram em caráter pessoal, intransmissíveis, hoje ornamentando
apenas as páginas da História e a memória de seus descendentes.
Há
que se considerar, também, as dignidades nobiliárias concedidas pelas Igrejas
tradicionais[2] ou por dinastias em exílio[3], cuja sucessão possa ensejar algum
questionamento.
A
oportunidade de se discutir uma sucessão nobiliária, com suas peculiaridades estranhas
aos institutos jurídicos brasileiros, poderá advir em decorrência desse novo mosaico
social, como já ocorre com a integração de normas comerciais, penais[4], de prevenção
e combate ao crime organizado e outras, ensejando algumas considerações, de cunho
acadêmico, à luz dos direitos e deveres individuais e coletivos de proteção à
herança e à sucessão.
A
Carta Magna brasileira (Título II - dos Direitos e garantias Fundamentais) proclama:
Art.
5º
XXX
é garantido o direito de herança;
XXXI
a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei
brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja
mais favorável a lei pessoal do de cujus.
Temos
assim, as garantias da carta suprema de que o estrangeiro possuidor de bens no Brasil, em
havendo cônjuge e/ou filhos brasileiros, terá o conteúdo econômico de seu patrimônio
preservado e inventariado segundo a legislação pátria, que disciplina a sucessão e a
partilha. Ressalvou-se ainda, expressamente, a aplicação da lei mais favorável aos
herdeiros e sucessores.
Entretanto,
ao lado do patrimônio tangível, concretamente inventariável, poderá haver uma carta
nobiliária, incluída entre os bens do inventário[5], representativo de uma riqueza
imaterial transmissível e indivisível, emoldurando os ativos patrimoniais do de cujus.
A
doutrina não é unânime, na classificação da distinção nobiliária como item
inventariável. Citamos o ilustrado entendimento de Taboada Roca[6]:
"Las mercedes nobiliarias no constituyen un bien que
pueda considerarse integrante del patrimonio de una persona. El disfrute de ellas, el
derecho a ostentarlas, es a titulo de precario, o como si fuera un usufructo vitalicio. No
se pueda estimar como componentes de la herencia, porque ésta, según el artículo 659
del Código Civil[7], sólo comprende »los bienes, derechos y acciones de una persona que
no se extingan por su muerte»."
O
Código Civil Brasileiro (Lei 3071, de 01/01/1916, que será substituida pela Lei nº
10.406, de 10/01/2002), contempla essa possibilidade:
"Art. 57. O patrimônio e a herança constituem coisas
universais, ou universalidades, e como tais subsistem, embora não constem de objetos
materiais". (grifamos)
O
novo Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406, de 10.01.2002, vigente desde de
11.01.2003), em outros termos, reforça o entendimento:
Art. 89. São singulares os bens que, embora reunidos, se
consideram de per si, independentemente dos demais.
Art. 90. Constitui universalidade de fato a pluralidade de
bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária.
Parágrafo único. Os bens que formam essa universalidade
podem ser objeto de relações jurídicas próprias.[8] (grifo nosso)
Art.
91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma
pessoa, dotadas de valor econômico.
A
lei não prevê nem descreve todas as espécies de bens, limitando-se a nomear os
gêneros, classificações amplas onde se pode alojar o item específico. Este pode ser
descrito como material ou imaterial, ou, ainda "manifestação da dinâmica cultural
de um povo ou de uma região" [9]. Nessa classificação, incluem-se os chamados bens
morais, ou bens dignários.
Na
linguagem jurídica, utiliza-se a figura denominada bem da vida. Segundo Amaral Santos,
"Os bens da vida se destinam à utilização pelo homem. Sem uns, este não
sobreviveria; sem outros, não se desenvolveria, não se aperfeiçoaria. A razão entre o
homem e os bens, ora maior, ora menor, é o que se chama interesse".[10]
Como
bens imateriais transmissíveis, personificados, as cartas de nobreza e suas derivações
sucessórias (com efeitos restritos ao seu universo peculiar) desfrutam, lato sensu, de
tutela no ordenamento jurídico brasileiro. Diz a Constituição Federal:
art. 215: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício
dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais";
art. 216 : "Constituem patrimônio cultural brasileiro os
bens materiais e imateriais, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira nos quais se incluem:
I- as formas de expressão;
II os modos de criar, fazer e viver;
III as criações científicas, artísticas e
tecnológicas;
IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico".
Temos
assim, que uma vez integradas ao convívio social, transmudadas, por adoção, em usos e
costumes nacionais, as tradições nobiliárias desfrutarão de resguardo jurídico
equivalente à proteção do folclore[11], como bens imateriais que são, ao teor do texto
constitucional que contempla:
"... portadores de referência à identidade, à ação,
à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira... ", (grifo
nosso)
Passando
a compor o patrimônio cultural brasileiro, em seu aspecto amplo, atingindo esse patamar
de integração cultural e jurídica, poderão, em futuro, ser defendidas via judicial,
por ação civil pública, nos termos da Lei nº 7.347/1985.
Porém,
ao contrário dos bens suscetíveis de valoração material, que serão convertidos em
quinhões correspondentes às cabeças de linha e às estirpes nos termos da legislação
civil, a sucessão em título nobiliário deverá operar-se de conformidade com as
cláusulas originárias da outorga, mesmo que antiquíssimas, imunes à ingerência da
autoridade estatal brasileira[12].
O
título nobiliárquico possui seu lastro em valores imateriais, representativos de
padrões culturais e das tradições da sociedade à qual pertence a estirpe do agraciado,
constituindo-se em um bem de família, apreciável lato sensu. Se gravado de
hereditariedade, integra o patrimônio histórico e moral do titular[13] e gera
expectativa de sucessão mortis causa, na conformidade do regramento originário da
escritura de outorga.
Cabe
uma observação: os bens patrimonialmente avaliáveis são partilhados entre todos os
herdeiros, cabendo a cada um o seu quinhão. A sucessão nobiliária, porém, contempla
somente um herdeiro, pois o título de nobreza deve ser apanágio de um titular único e
exclusivo, em cada geração.
Enfatizando
essa característica, reguladora das sucessões, há diplomas nobiliários que,
prudentemente, a contém expressa na fórmula "cada um a seu próprio tempo".
Esse
requisito, integrante da substância institucional do documento, torna impossível,
portanto, a ocorrência de composse[14] em título nobiliárquico.
Examinaremos,
a seguir, algumas diferenças entre a sucessão civil e a sucessão nobiliária.
Embora
motivadas pelo mesmo fato jurídico (morte de alguém), as sucessões (civil e
nobiliária) têm diferentes reflexos sobre a destinação dos bens transmissíveis.
Ocorrendo
o óbito do proprietário de bens patrimoniais (no direito civil é denominado autor da
herança), que podem ser expressos em moeda, o espólio será dividido em tantos quinhões
quantos forem os seus herdeiros. Cada quinhão passará a integrar o patrimônio
econômico do beneficiário e a nova hereditas, por sua vez, será oportunamente
partilhada, na sequência da vocação hereditária determinada na ordenação civil.
A
herança patrimonial, muitas vezes convertida em moeda pela venda dos bens, tende a
pulverizar-se, face às divisões e partilhas subsequentes. Se não conservada, acaba por
esgotar-se, fazendo desaparecer os bens materiais e até a memória de seu autor original.
A
herança civil é partilhada e transposta, do espólio do autor, diretamente para os
herdeiros, sem outras formalidades que o ato legal de partilha, com os registros
pertinentes, e recolhimentos dos tributos devidos.
Já
a herança nobiliária, como um bem moral transmissível porém indivisível, mantém-se
intacta quando da sucessão, pois haverá sempre um único beneficiário em cada
geração. Com a morte de seu possuidor, não se bandeia automaticamente para o herdeiro:
opera-se uma espécie de devolução ficta ao concedente, que a entregará ao novo
titular, previsto na linha de sucessão, nas mesmas condições em que o fez ao primeiro
agraciado.
Por
essa ficção, segundo a melhor doutrina[15], o sucessor nomeado na cártula receberia o
título diretamente do concedente, e não do último titular. Foi a vontade do instituidor
que planeou a sucessão e o fez aspirante à honraria, e não o parentesco ou eventual
preferência do antecessor.
Essa
devolução constitui-se em ficção jurídico-nobiliária, pois as sucessões,
sequenciais e com múltiplos participantes (cada um ao seu próprio tempo), acompanharão
o ciclo das gerações na família do agraciado ao longo dos séculos, enquanto que a
autoridade dinástica concedente, personagem único, com a existência física limitada
por imposição biológica, será representada, nessa relação, pela subsistência de sua
vontade, soberana e indestrutível, tornada expressa e perpétua no documento de
instituição da mercê, para os efeitos nobiliários.
Na
Espanha, assim como em outros países monárquicos, esse ritual é previsto em lei, que
prescreve todos os atos necessários à continuação do uso do título pelo sucessor
indicado no ato de constituição do título de nobreza.
Se
a Coroa concedente não mais existir como poder estatal no país de origem, a Casa Real
remanescente, em exílio dinástico, poderá dirimir eventuais controvérsias ou adotar
providências e avaliar pedidos sobre as sucessões nobiliárias de sua jurisdição. Do
exposto, podemos extrair pequena sinopse ressaltando as principais diferenças que marcam
essas duas espécies de sucessões, e seus efeitos quanto aos herdeiros e os bens
transmissíveis:
a)
herança civil
1)
É representada por bens patrimoniais, que podem ser quantificados e avaliados como
expressão monetária;
2)
A herança civil passa diretamente do espólio do autor para o beneficiário;
3)
O espólio é partilhado entre todos os herdeiros, na proporção de seus quinhões;
4)
À cada sucessão, o patrimônio econômico será novamente dividido, podendo diluir-se ou
tornar-se irreconhecível, obliterando a memória do autor original.
5)
Na falta de herdeiros ou sucessores, o patrimônio reverterá para o órgão governamental
a que se jurisdicionam os bens, passando a integrar o patrimônio público.
b)
herança nobiliária:
1)
É representada por um bem imaterial, indivisível, transmissível a um único
beneficiário em cada sucessão, e inapreciável em expressão monetária;
2)
Mantém-se intacta, indivisível e de uso exclusivo, em todas as sucessões;
3)
Não se transfere, automaticamente, para a posse do herdeiro; há uma espécie de
vacância, ocorrendo uma devolução ficta ao concedente, que o entrega ao sucessor do
titular falecido, para seu uso.
4)
O instituidor da mercê é representado, nessa relação ficta, por sua vontade, expressa
no documento de instituição da mercê nobiliária.
5)
Na Espanha e em outros países monárquicos, há legislação específica para esse
procedimento.
6)
Dinastias ex-reinantes, sucessoras do poder concedente, podem decidir pleitos sobre
brasões, honorificências e títulos concedidos por seus ancestrais.
7)
Na ausência de herdeiros ou sucessores, o título nobiliárquico retorna ao patrimônio
heráldico da Coroa concedente ou de seus sucessores em exílio dinástico, que poderão
outorgá-lo novamente, a seu critério.
Na
sucessão nobiliária não se cogita da ordem de vocação hereditária, prevista no
Direito Civil Brasileiro[16]. Relembrando esta, como referencial legislativo:
"é a distribuição dos herdeiros em classes
preferenciais, conjugando as duas idéias de grau e ordem (art.1.603-1.625 do
C.C.)"[17]
Dizia
o antigo Código Civil Brasileiro, Lei nº 3.071, de 01/01/1916,
Art.
1.603. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I
- aos descendentes
II-
aos ascendentes
III-ao
cônjuge sobrevivente
IV-
aos colaterais
V
- Aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União
1.604.
Na linha descendente, os filhos sucedem por cabeça, e os outros descendentes, por cabeça
ou por estirpe, conforme se achem, ou não, no mesmo grau.
l.605.
Para os efeitos da sucessão, aos filhos legítimos se equiparam os legítimos, os
naturais reconhecidos e os adotivos.
A
sucessão nas honras heráldicas segue estritamente a ordem estabelecida na carta de
instituição, a qual pode não coincidir com a sucessão civil.
Conforme
já mencionado, há um único sucessor em cada geração; nesse aspecto pode-se observar,
em tese, os personagens indicados itens I, II e IV do artigo 1603, cada um a seu tempo e
excluindo os demais, em cada geração.
Quanto
ao cônjuge sobrevivente (no caso da mulher), este somente usufrui das honras heráldicas
em razão do ius uxorius. A colação desaparece com a morte do titular, cessando todos os
vínculos nobiliários com o término dessa relação, ressalvando sua titulatura pessoal.
O
então herdeiro assumirá o título nas condições e na modalidade em que lhe
transmitido, e seu cônjuge sucederá ao supérstite da geração anterior, na posição
familiar e social (sob o aspecto nobiliário) que este ocupava.
Surge
uma questão, especialmente nas monarquias: a esposa do rei falecido perde os atributos de
rainha?. Entendemos que não; apenas exonera-se dos deveres oficiais, passando a
denominar-se rainha-mãe, conforme se observa nas tradições das monarquias européias.
Esse tratamento é informal e carinhoso, revelando o respeito e estima dos cidadãos para
com a ex-soberana consorte. O Cerimonial das cortes mantém, no protocolo, os pronomes de
tratamento que lhe cabiam, quando do exercício da função oficial.
Por
analogia, pode-se adotar igual procedimento na nobiliarquia; assim, por exemplo, uma
duquesa, viúva de um duque, poderá ser denominada, socialmente, duquesa-mãe, em
relação ao cônjuge de seu filho, herdeiro do titular.
Dos
filhos adotivos
Interessante
aspecto da sucessão civil, a adoção, sob aspecto nobiliário, merece algumas
considerações. Se o titular não possuir descendência ius sangüinis, poderá indicar
um sucessor que não possua vínculo de sangue com o primeiro titular da honraria?
Sabemos
que a sucessão guarda sempre um elo de família, de sangue, de tradições. E mais, o
titulado não possui o ius disponendi, para adequar a linha de sucessão prevista na
instituição da honraria, com a realidade familiar. Mas, ante a possibilidade de
extinguir-se a linha originária, por falta de herdeiros, deverá o último titular
conformar-se com o perecimento de tradições, muitas vezes, milenares?.
Esse
assunto foi abordado no opúsculo "Dinastias Memoriais", que reproduzimos no
capítulo VI desta obra.
A
jurisprudência nobiliária é unânime em reconhecer a validade das cláusulas
originárias dos antigos diplomas de agraciamento, as quais independem de reconhecimento
pela autoridade governamental posterior. Se essas cláusulas estabelecerem, por exemplo,
que a sucessão deverá ocorrer exclusivamente em grau de primogenitura masculina, assim
deverá operar-se, e o novo titular será reconhecido como tal perante seus pares. Essas
cláusulas são, em princípio, inarredáveis, e assim têm sido consideradas pelos
tribunais[18].
Há
exceções: O monarca concedente e seus sucessores na Coroa do país - no exercício do
poder estatal ou em exílio dinástico - detêm o poder de alterar as cláusulas
originárias, adaptando-as a uma nova realidade, por iniciativa própria ou mediante
petição do interessado.
O
possuidor de título nobiliário, ou, melhor conceituando, seu usuário, não pode, moto
proprio, cedê-lo, transferi-lo, aliená-lo ou alterar a ordem sucessória, em razão de
não possuir o ius honorum, que se conceitua como o direito de conferir, validar e
reconhecer honrarias, no caso, privativo de autoridades dinásticas[19].
As
sucessões nobiliárias tradicionais têm características próprias (prevalência do
herdeiro masculino sobre o feminino, do grau de primogenitura entre os descendentes
varões, da representação, e outras), estatuídas no ato de sua criação.
Na
época atual, essas cláusulas eventualmente poderão ser contestadas, sob o prisma da
igualdade (considerada esta como ausência de privilégios em razão de sexo, nascimento e
representatividade), proclamada pelos estados democráticos. A igualdade jurídica,
entretanto, não alcança situações de fato, sedimentadas pelo tempo, nem os aspectos
nobiliários e dinásticos atuantes em esfera estritamente familiar, posto que estas
relações não afetam o exercício das liberdades públicas nem a isonomia de tratamento
jurídico e fiscal, comuns a todos os cidadãos.
Reiteradas
decisões[20] já rechaçaram a pecha de discriminatória à sucessão tradicional e suas
imposições originárias.
As
cortes de justiça da Espanha têm confirmado a validade do regramento sucessório
instituído pelas antigas concessões nobiliárias, por considerar que suas cláusulas
não impedem o exercício de liberdades públicas ou direitos individuais a todos
reconhecidos pelo ordenamento constitucional daquele reino.
No
panorama brasileiro, com sua evolutiva gama de adaptações jurídicas e ilimitado
sincretismo cultural, podemos colocar, para discussão, uma hipotética ocorrência dessa
possibilidade.
Nesse
contexto, poderá eclodir a irresignação de algum herdeiro reivindicando a tutela
estatal, se restar preterido em razão de cláusula acoimada de discriminatória, à luz
dos modernos direitos e igualdades.
Apreciando
um pleito de tal jaez, deverá o magistrado brasileiro indeferir o rogo, ao entendimento
de impossibilidade jurídica do pedido?.
Sob
outras luzes, ampliando o alcance da vinculação entre o direito de petição do
administrado e o dever do Judiciário de prestar a tutela devida, poderá franquear o
pálio estatal, à inusitada pretensão?.
O
Código de Processo Civil aponta algumas diretrizes:
"art. 4º: O interesse do autor pode limitar-se à
declaração:
I - da existência ou inexistência de relação jurídica;
II - da autenticidade ou falsidade de documento.
Art. 126: O juiz não se exime de sentenciar ou despachar
alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as
normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios
gerais de direito. (grifo nosso)
Art. 128: O juiz decidirá a lide nos limites em que foi
proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei
exige a iniciativa da parte".
O
embasamento do pedido deverá ater-se aos interesses tutelados pela legislação
brasileira, cumprindo ao operador demonstrar, com clareza e objetividade, o liame entre a
tradição nobiliária questionada, geralmente de origem vetusta, e a possibilidade de sua
adequação ao entendimento pretoriano moderno.
Ao
atribuir concretude à inovação, poderão os operadores do Direito amparar-se na
doutrina esposada pelo Tribunal Constitucional da Espanha[21], como valioso supedâneo
para a fundamentação de seus pleitos. Sem dúvida, preciosos subsídios poderão ser
acrescentados pelos juristas pátrios, que poderão enriquecer esta nova área com sua
vasta experiência cultural e humanística.
De
outra parte, decidindo-se o judiciário por enfrentar o mérito da pretensão, seu decisum
poderá propiciar a integração das tradições nobiliárias à militância forense
pátria, e firmar jurisprudência moldada à realidade brasileira.
As
condições processuais para a apreciação do pedido poderão ser reguladas por normas
advenientes, sistematizando os procedimentos necessários à nova espécie, notadamente
quanto à possibilidade jurídica do pedido e sua adequação à realidade social
contemporânea. A produção forense, assim instrumentalizada, não oferecerá nenhuma
dificuldade para o ajuizamento do feito e sua apreciação, nos limites da propositura.
Porém,
qual implúvia romana a resguardar as vestes sacerdotais do assédio das chuvas, a
intocabilidade proveniente do tradicionalismo velará o objectu da cártula nobiliária:
seu conteúdo primordial, o fator nobilitante, permanecerá imune, fora do alcance do
provimento judicial.
A
manifestação pretoriana sobre as condições sucessórias produzirá efeitos sobre o
objeto da discussão, podendo emprestar-lhe aplicabilidade consentânea com o modus
vivendi atual; não terá, porém, o condão de estabelecer, negar, confirmar, nem
reconhecer as qualidades nobiliárquicas das partes, o que é atributo exclusivo das
autoridades dinásticas.
Indicações Bibliográficas
[1]
Magnoli, Demétrio, Globalização-Estado nacional e espaço mundial, Moderna,
S.Paulo-SP,1999, 4ª capa.
[2]
A Igreja Católica Apostólica Romana e as Igrejas de orientação ortodoxa podem conceder
honrarias em toda extensão da hierarquia nobiliária.
[3]
O direito de conferir honras (ius honorum) dos chefes dinásticos em exílio é
reconhecido e confirmado pela jurisprudência nobiliária internacional.
[4]
Cf. Steiner, Sylvia Helena de Figueiredo, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e
sua integração ao processo penal brasileiro, RT.SP, 2000.
[5]
Trata-se, evidentemente, de um bem moral peculiar, inapreciável economicamente.
[6]
Taboada Roca, Manuel, Estudios de Derecho Nobiliario, 2001, Fundacion Beneficentia et
Peritia Iuris, España, Tomo II, p. 73
[7]
Refere-se ao Código Civil Espanhol.
[8]
Aponta-se, aqui, a possibilidade de aplicação das regras do Direito Nobiliário
[9]
Dic. Eletrônico Aurélio
[10]
Santos, Moacyr Amaral, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 1º vol, 21ª ed.,
1999,. Saraiva., pg. 3/4.
[11]
Cf. Decreto Federal nº 3.551, de 04/08/2000 (Programa Nacional do Patrimônio Imaterial)
[12]
A legislação brasileira não proíbe os títulos de nobreza, apenas não os reconhece
como distinção pessoal, destituindo-os de proteção jurídica lato sensu, salvo se
fizerem parte do nome do titular. Nesse caso, a proteção legal se dará ao nome civil,
como um todo.
[13]
O titular da mercê nobiliária não é possuidor, e sim usuário, embora com nuances
próprias.
[14]
Posse concomitante por duas ou mais pessoas. Inadmissível, em Direito Nobiliário.
[15]
Entre outros, citamos Taboada Roca, Manuel, Las Sucesiones Nobiliarias y su Regulacion
Legislativa después de la Constitucion, Revista Hidalguia, Madrid, 1983.
[16]
Refere-se a Lei nº 3.071, de 01/01/1916 (Código Civil Brasileiro), substituída pela Lei
nº 10.406, de 10/01/2002. Mencionada apenas como referência.
[17]
Primeiras Linhas do Direito das Sucessões - Gisele Leite, in
www.direito.com.br/Doutrina.ASP
[18]
Os órgãos judiciários, neste trabalho, são denominados genericamente por tribunais.
[19]
Os chefes de Estados não-monárquicos também podem conferir honras, mas sem caráter
nobiliário.
[20]
Nesse sentido, há vários acórdãos do Tribunal Constitucional de Espanha.
[21]
Méroe, Mário de. Estudos sobre Direito Nobiliário, Ed. Centauro, SP, 2001, pág. 72 e
segs.
NOTA:
Este artigo é um dos capítulos da obra Tradições Nobiliárias Internacionais e sua
Integração do Direito Civil Brasileiro, que será disponibilizada em capítulos.
Sobre o autor: Mário de Méroe
Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº 203 (25.1.2004).
Elaborado em 10.2003.
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico
eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
MÉROE, Mário de. Tradições nobiliárias
Internacionais e sua integração ao Direito Civil brasileiro .